De Oceano Azul à Crise de Coerência Estratégica: o dilema contemporâneo da Tesla

A Tesla, desde sua fundação, constituiu-se como potencial referência da Estratégia de Oceano Azul*, não apenas por criar um novo espaço competitivo – como pioneira em veículos elétricos de qualidade -, mas pela capacidade de promover a “reconfiguração do sistema de criação de valor”, em consonância com a evolução dos paradigmas estratégicos apresentados por Richard Normann – em Reframing Business. Mais do que produzir carros elétricos de alta performance e design diferenciado, a empresa assumiu um propósito transcendia a lógica tradicional de mercado: “acelerar a transição do mundo para a energia sustentável”, articulando um ecossistema de valor baseado em inovação tecnológica, impacto ambiental positivo e engajamento, em que clientes, parceiros e comunidade atuavam como co-criadores de valor.

Elon Musk, referência de empreendedor visionário, foi o principal catalisador dessa transformação, atuando como ponte entre tecnologia, propósito e mobilização social. Contudo, sua atuação recente revela uma ruptura crescente entre a missão fundadora da Tesla e as posturas públicas de seu principal líder e acionista. Ao se alinhar com pautas políticas que promovem o uso de combustíveis fósseis, negam a emergência climática e fragilizam o papel do Estado como indutor de políticas de sustentabilidade – isso sem mencionar as questões de ideologia e atuação política, amplificadas pelo alcance das redes sociais, em um mundo cada vez mais conectado e polarizado -, Musk colide com os valores da comunidade que formou a base afetiva e simbólica da Tesla, tanto no mercado americano quanto em outros países, especialmente na Europa. Tal desalinhamento compromete o princípio de “mensagem consistente”, aspecto fundamental na diferenciação duradoura das estratégias de oceano azul.

Essa crise de coerência estratégica se agrava diante de um segundo fator estrutural: a ascensão de concorrentes, especialmente as montadoras chinesas, que vêm combinando excelência tecnológica, preços acessíveis e velocidade de inovação. O que antes era um oceano azul começa a se tornar um espaço densamente competitivo, exigindo da Tesla um novo salto criativo. A própria lógica da estratégia de oceano azul exige um movimento contínuo de renovação e criação reiterada de valor — algo que a Tesla parece ter deixado de protagonizar, ao depender excessivamente de sua vantagem histórica (mesmo diante de promessas disruptivas em relação aos veículos autônomos e inteligência artificial acoplada).

Sob a ótica do arquétipo da organização viva e consciente, essa dissonância entre propósito, narrativa e ação efetiva, expõe uma fratura na identidade da empresa — nível mais profundo e sutil de qualquer organização. A identidade, ao representar o norte da estratégia, os fundamentos da cultura e a inspiração da marca, constitui o elo simbólico entre a organização e seu ecossistema. Quando esta identidade é traída por incoerências práticas, como as observadas no comportamento público de sua principal liderança, o impacto vai além da imagem e da própria queda nas vendas: instala-se uma crise de confiança estrutural que impacta na expectativa em relação a sua capacidade de gerar valor no futuro.

A Tesla, que por anos cultivou uma marca icônica e inspiradora, começa a perder um de seus ativos mais valiosos: sua legitimidade simbólica. A conexão com os clientes, que sustentava sua condição de lovebrand, dá lugar à desconfiança. A marca, antes expressão autêntica de um propósito de impacto coletivo, torna-se ambígua, desconectada de sua base originária.

Diante desse cenário, impõe-se uma questão: é possível a Tesla resgatar sua coerência estratégica e sua confiança pública sob a liderança de Elon Musk? Em uma organização tão representada por um líder carismático e centralizador, torna-se cada vez mais difícil dissociar os valores e atitudes pessoais do fundador da identidade da empresa. A fusão entre figura pública e organização, que no início foi força propulsora, agora revela-se um obstáculo à necessária renovação simbólica e estratégica. O desafio crítico que emerge deste contexto talvez seja o seguinte: a partir da crise, será a Tesla capaz de reencontrar sua essência e desenvolver a capacidade de criação reiterada de valor — mesmo que isso implique reconfigurar sua relação com a própria liderança que a impulsionou? Acompanhemos as cenas dos próximos capítulos.

Guilherme Callegari
Sócio da Adigo e consultor em estratégia e identidade organizacional. Arquiteto pela USP, possui trajetória internacional e mais de 10 anos de experiência em projetos de branding e transformação cultural.

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* “A Estratégia do Oceano Azul” – Kim, W. e Mauborgne, R.

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